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Eu tenho medo do escuro.

Na infância, o escuro parecia esconder braços, antenas ou dentes afiados. Mas, na vida adulta, as sombras tomam outras formas. Elas se parecem com nossas piores dores, com tudo o que poderíamos imaginar que nos traria medo, solidão e confusão. Não se projetam mais em paredes ou sob a cama, mas se fecham em portas dentro de nós mesmos. Portas que trancamos, seja por medo ou por vergonha, escondendo partes da experiência humana que nos confrontam, desafiam e assustam. Mesmo escondidas, sabemos que elas permanecem lá, esperando para serem vistas.


Aceitar alguém por inteiro se torna um desafio, pois requer abrir espaço não só à luz, mas também às sombras. Talvez seja por isso que o processo de autoaceitação seja tão doloroso: temos acesso irrestrito a todas as partes de nós mesmos. É difícil enxergar a luz em meio às nossas próprias sombras, ainda mais aceitar que elas fazem parte do processo de entender quem realmente somos. Se se aceitar já é difícil, viver as consequências disso é ainda mais desafiador.


Por isso, eu não compro a ideia de que construir relacionamentos íntimos ou desenvolver uma autoestima sólida sejam tarefas triviais. A intimidade, tanto com quem amamos quanto com nós mesmos, só acontece quando temos coragem de olhar para as partes que não gostamos de nós — e mais coragem ainda para revelá-las a alguém que não queremos perder. Dar acesso à nossa intimidade não é simples, principalmente para quem já teve um passado onde essa confiança foi quebrada. A convivência íntima deixa escapar, dá ao outro acesso a portas que, muitas vezes, preferiríamos manter trancadas.


Quando estamos sozinhos, já é doloroso e desafiador encarar nossas sombras. Em um relacionamento, encará-las se torna também um ato de responsabilidade. É preciso consciência para reconhecer quando essas partes de nós transbordam, machucam ou ultrapassam os limites de uma relação. Muitas vezes, preferimos esconder por medo de decepcionar ou perder o outro. Mas esconder perpetua a dor, a desconfiança — e, principalmente, a sensação de que não seríamos capazes de nos aproximar delas sem nos perder.


Essa visão materialista de relacionamentos — como algo que todos precisam ter — esconde a verdadeira joia do amor. Amar não é ser apenas luz que acalma as sombras dos outros. Amar é encontrar uma relação de segurança, respeito e intimidade, onde há espaço para sermos honestos sobre quem verdadeiramente somos. Um relacionamento pode ser tratado como uma conquista material; mas amar deve ser tratado como um ato sagrado. Amar exige coragem para sermos inteiros, para mostrarmos tanto a luz quanto as sombras. A beleza do amor atinge seu ápice quando somos capazes de acessar as sombras um do outro sem violar o que há de sagrado nessa experiência.


Se expor não é fácil — e por isso o amor não é fácil. Encarar a própria escuridão exige uma sinceridade que nem sempre sabemos como acessar. No entanto, mesmo sem muita certeza, quando nos abrimos para a experiência, vivenciamos momentos únicos e poderosos: instantes em que olhamos para nossa totalidade sem medo, sem a necessidade de superá-la ou vencê-la, mas apenas de aceitá-la como ela é. Esse é um passo essencial para transformar não apenas a relação consigo mesmo, mas também a maneira como nos conectamos com os outros e com aquilo que consideramos sagrado.


Conhecer a si mesmo e se abrir para o outro são processos tão belos quanto aterrorizantes. O contraste entre luz e sombra cria algo único, e observá-lo à distância é bem diferente de vivê-lo por dentro.

Me fascina ser humana. Ser capaz de viver, temer e ter consciência da minha luz e das minhas sombras. Da minha vulnerabilidade em me perder nelas, mas também da minha força em, enquanto vivo suas consequências, contemplar a dor e a beleza do todo.


Eu temo muito o escuro. Ele me lembra que há muito em mim que ainda desconheço. Ele me força a encarar, o tempo todo, a possibilidade de estar perto dessas sombras e aceitá-las sem me afastar de quem sou. E, enquanto as observo, percebo: o que acontece é sagrado. É amor.

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